Berlim Alexanderplatz

Foi importante conhecer Berlim Alexanderplatz de Alfred Doblin. Penso que consegui perceber quem era Franz Bieberkopf. É uma história marcante. Quem não queira levar de vencida todo o calhamaço (que custa muito), que leia a inesquecível primeira página – só ela podia merecer uma discussão numa aula de direito penal, sobre fins das penas e reinserção social dos reclusos. Dentro das páginas de Doblin também podemos perceber de perto algum do contexto social da ascensão da extrema direita e das guerras mundiais.

Tempo parcial

“Parecer desfavorável à intenção de recusa”.

O quanto aprendi sobre artigos 55.º e 57.º do Código do Trabalho nestes meses de agosto a novembro. Não foi fácil (e não é!) mas passei na prova. O prémio é ajudar no exercício de direitos de pessoas próximas.

Alterações à Lei de Imigração – a Proposta de Lei n.º 19/XV

O Governo apresentou a Proposta de Lei n.º 19/XV ao Parlamento. É uma PPL que propõe alterações à Lei n.º 23/2007, de 4 de julho – a Lei da Imigração. Amanhã, 21 de julho, esta PPL será votada na generalidade, especialidade e votação final global. O processo legislativo na Assembleia da República ficará concluído. É certo que uma Proposta de Lei com muitas e delicadas alterações (como são as que mexem com a vida das pessoas) deveria merecer um maior tempo de reflexão. No entanto, impera a pressa de mobilizar mão de obra para Portugal, havendo urgência em suprir necessidades quer para o turismo, hotelaria e restauração (estamos no verão), quer para a construção, quer para outras atividades. Note-se que se não fosse aprovada amanhã, como se espera, ficaria tudo para setembro (a Assembleia suspende os trabalhos entre fins de julho e 15 de setembro).

Ao contrário do passado, onde se pretendia evitar um “efeito chamada” (um papão que muitos acenavam, sempre que se propunha alguma medida que tivesse como efeito regularizar imigrantes de forma mais célere) Portugal precisa mesmo de pessoas para ocupar postos de trabalho vagos no país. É mesmo essencial desencadear um efeito chamada.

Da Proposta de Lei destacaria algumas ideias positivas:

– O visto para procura de emprego. A ser bem aplicado e emitido com eficiência, pode ser um motor de migrações regularizadas. Não existe ninguém que esteja mais interessado em haver alternativas legais para migrar do que os próprios migrantes. Assim, os migrantes, trabalhadores que procuram melhores condições de vida, partem legalizados dos países de origem, com mais garantias, com mais segurança, e tem a oportunidade de encontrar trabalho em Portugal. Este é um visto que se somará aos restantes vistos e às alternativas de regularização já previstas na redação atual da lei, por exemplo nos artigos 88.º, n.º 2 e 89.º, n.º 2.

– O fim das quotas (o chamado pela lei “contingente global de oportunidades de emprego a fixar pelo Conselho de Ministros”). Uma medida sem sentido, sem qualquer utilidade, que aliás vinha sendo suspensa, ano após ano, e que as associações de imigrantes desde o primeiro momento se posicionaram contra.

– A possibilidade dos titulares de visto de estudo, estagiários, entre outros, poderem exercer uma atividade profissional remunerada, ao contrário da redação atual da lei, que exige a solicitação de uma autorização junto do SEF.

– A extensão de prazos de concessão de várias autorizações de residência.

Claro está que estas alterações precisam de eficiência da Administração Pública. É necessário que os serviços públicos (uso a expressão serviços públicos, porque, como se sabe, foi aprovada a lei que extingue o SEF) não deixem as vidas das pessoas penduradas nos corredores, suspensas nas esperas. De nada valerá que exista a possibilidade de obtenção de um visto para a procura de trabalho se este demorar meses a ser concedido ou que se espere meses por um agendamento, como, infelizmente, vem sendo habitual.

A Proposta de Lei também tem um lado repressivo, menos falado. Não há bela sem senão, diz o provérbio. Os imigrantes, focados no trabalho, fiéis cumpridores da lei, que buscam regularizar o seu projeto migratório e a sua vida o mais depressa possível, relacionam-se menos com este lado da lei. No entanto, cabe mencionar que a PPL parece querer limar arestas do enquadramento da lei portuguesa, ajustá-la à lei europeia. O Governo pretende afinar o sistema e assegurar mais eficácia no controlo das fronteiras e nas decisões de afastamento.

Importa acompanhar com cuidado a lei e estas novas alterações. A atenção com a Lei de Imigração deve ser permanente. Trata-se de uma lei que concede muitos poderes à Administração e ao SEF (enquanto não houver a transição das suas competências para outras entidades, fruto da extinção do organismo). Não só a lei, mas a sua aplicação, a maneira como é interpretada, é um reflexo de como os imigrantes são vistos e recebidos pelas entidades públicas e pelo país.

Aditamento:

A seguir à conclusão da escrita destas notas, foram encaminhados dois pareceres à Assembleia da República. O Parecer do Alto Comissariado para as Migrações e o Parecer da Comissão Nacional da Proteção de Dados.

Ambos os pareceres devem ser lidos e tidos em consideração para futuras correções das alterações introduzidas, que, como se mencionou acima, foram aprovadas depressa demais.

Direitos políticos para os imigrantes

Em primeiro lugar agradeço o convite a participar no podcast. É um prazer contribuir para a discussão de uma temática tão importante como são os direitos dos imigrantes no país.
Em relação à primeira questão colocada:
O direito de voto, os direitos políticos, os direitos eleitorais, são, sem dúvida, instrumentos importantes e poderosos de integração no país.
Pensemos na perspetiva dos imigrantes, que são pessoas que vivem e trabalham no país. Dão o seu melhor, trabalham, pagam os seus impostos, contribuem para a segurança social, ajudam os locais, as cidades, ajudam o país onde vivem a funcionar. Estas pessoas são parte integrante da comunidade, dão tudo o que tem a dar. Assim, naturalmente, deveriam ter direitos, deveriam poder fazer ouvir a sua voz. Como pergunta, pode haver, sim, um sentimento de exclusão. Imagine-se um cidadão que, estando em Portugal com estabilidade, que tem interesse pelos assuntos do país e não pode votar por causa da nacionalidade que tem.
Num ponto de vista da sociedade de acolhimento, parece evidente que deveria haver interesse em ouvir uma parte importante dos seus cidadãos. Pessoas que estão aqui connosco. A sociedade deveria conceder direitos e desafiar os cidadãos imigrantes a participar na democracia. É positivo para as sociedades que não existam zonas de exclusão de direitos.
Em relação à segunda pergunta colocada:
Os imigrantes deveriam ter a possibilidade de exercer os seus direitos políticos em todas as eleições. Neste momento, já existem estes direitos eleitorais, direitos de participação eleitoral, para as autarquias locais, para as eleições autárquicas. No entanto, estes direitos estão condicionados a um critério de reciprocidade. Os imigrantes só podem votar em Portugal se no seu país de origem os portugueses puderem votar. Assim, apenas os cidadãos de doze países, além dos estados-membros da União Europeia, têm capacidade eleitoral ativa. O princípio da reciprocidade, neste caso, serve para fechar portas e não para abrir possibilidades. Pensemos, por exemplo, que o país de origem dos imigrantes não tem eleições para autarquias, que não tem esta organização por municípios, ou que é um regime ditatorial, que não tem eleições. Imagine-se que as pessoas vêm de um país que não respeita os direitos dos imigrantes. Por causa disto, deve-se penalizar aqui os direitos de quem vive em Portugal?
É preciso repensar, sem medos, a capacidade de participação dos imigrantes na democracia. Note-se que os portugueses conhecem esta realidade – Portugal é um país com uma comunidade emigrante muito significativa. Os portugueses sabem como é importante a sua participação política nos países onde escolhem viver, como isso ajuda à sua integração e a sua interação com as sociedades de acolhimento.
E é isso, para já, agradecendo o convite à participação.

A extinção do SEF (atualização)

As associações de imigrantes, há muito, alertavam que os cidadãos imigrantes não são um caso de polícia. Diziam que a Administração Pública devia ter uma relação diferente com os imigrantes. Tal como os nacionais de um país dirigem-se a entidades administrativas para solicitar o seu cartão de cidadão, os estrangeiros deviam tratar dos seus documentos, nomeadamente as suas autorizações de residência, nos serviços públicos comuns aos restantes cidadãos, e não com órgãos policiais. Para o assunto mais corriqueiro, e também mais importante, da vida de um imigrante – obter uma autorização de residência ou renová-la – é exigida uma visita ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, uma autoridade policial, que reúne em si todos os poderes, burocráticos e repressivos.

Relacionado com esta reivindicação das associações, surgiu um interlocutor para as questões da imigração, o então chamado Alto-Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas que foi evoluindo até ao atual Alto Comissariado para as Migrações, entidade que, dentro das suas missões, aborda as questões da integração dos imigrantes no país. No entanto, a relação permanente dos imigrantes com o SEF sempre se manteve.

Tais questões sempre se colocaram. O inominável e chocante assassinato de Ihor Homeniuk no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa fez com que esta discussão ressurgisse.

Após um processo legislativo que culminou na determinação da extinção do SEF, através da Lei n.º 73/2021, de 12 de novembro, a entrada em vigor da mesma foi adiada por um período de 180 dias (Lei n.º 89/2021, de 16 de dezembro), por questões relacionadas com a pandemia de COVID-19.  Recentemente, apesar da informação dada a 5 de abril (o novo Ministro da Administração Interna José Luís Carneiro confirmava que o SEF seria extinto a 12 de maio), afinal, o mesmo Ministro anunciou, a 22 de abril, que a extinção será adiada sine die. Em coerência, no Parlamento, deu entrada a Proposta de Lei n.º 5/XV/1.ª que veio a originar a Lei n.º 11/2022, de 6 de maio, alterando a produção de efeitos da Lei n.º 73/2021, adiando, novamente, a extinção do SEF.

O MAI justificou a decisão nestes termos: “Por entendermos que há dimensões desta transição institucional e desta reestruturação que não estão suficientemente amadurecidas e depois de uma avaliação efetuada com as forças e serviços que participam nesta transição, entendeu o Conselho de Ministros deliberar pela opção de fazer entrar a lei em vigor por altura da aprovação do decreto-lei que constituirá e instalará a Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo”.

Assim, agora, espera-se pela aprovação do Decreto-Lei que constituirá a Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo. Em tal momento cumprir-se-á a extinção do SEF e o Decreto-Lei n.º 252/2000, de 16 de outubro (Aprova a estrutura orgânica e define as atribuições do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) será revogado (artigo 14.º da Lei n.º 73/2021).

E como será feita a extinção? Haverá um vazio legal? Haverá um vazio de competências? Parece que não haverá qualquer lacuna. A Lei n.º 73/2021 oferece as seguintes respostas:

As atribuições em matéria de segurança interna do SEF transitam para a Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana e Polícia Judiciária, especificando no seu artigo 2.º as atribuições policiais transferidas para cada uma destas forças de segurança.

As atribuições administrativas (o que verdadeiramente interessa aos imigrantes) estão explicadas no artigo 3.º, sendo divididas entre:

– o Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. (IRN), no que respeita aos cidadãos estrangeiros titulares de autorização de residência, nos termos a definir em diploma próprio a aprovar pelo Governo;

– a Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo (APMA), serviço de natureza administrativa com atribuições específicas, a criar pelo Governo. A APMA terá a missão de concretizar as políticas públicas em matéria migratória e de asilo, nomeadamente a de regularização da entrada e permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional, emitir pareceres sobre os pedidos de vistos, de asilo e de instalação de refugiados, assim como participar na execução da política de cooperação internacional do Estado português no âmbito das migrações e asilo (n.º 3 do artigo 3.º). Junto da APMA funcionará um órgão consultivo em matéria migratória e de asilo, com competência para emitir pareceres, recomendações e sugestões, onde estarão representados departamentos governamentais e organizações não-governamentais que tenham como missão a defesa dos direitos das pessoas migrantes, refugiadas e requerentes de asilo, à defesa dos direitos humanos ou ao combate ao racismo e xenofobia (n.º 4 do artigo 3.º).

Ainda, tendo em atenção ao preceituado na Lei n.º 73/2021, destaquem-se três questões:

– A obrigação do Governo assegurar prestação de apoio jurídico, através de parceria com a Ordem dos Advogados e com organizações representativas de migrantes e requerentes de asilo, assim como apoio humanitário, linguístico, médico e psicológico nas zonas internacionais (artigo 13.º);

– É assegurada a formação regular e continuada dos efetivos da PSP, GNR e PJ, bem como dos funcionários do IRN, em matérias de direitos humanos, direito das migrações, direito de asilo e em outras matérias relacionadas com as suas novas atribuições (artigo 12º);

– Estabelecem-se princípios para a transição do pessoal da carreira de investigação e fiscalização para outras forças de segurança ou serviços (artigo 11.º).

Resta agora aguardar e verificar o que será previsto nos diplomas que serão legislados pelo Governo relativamente às competências do IRN e da APMA. Espera-se que cumpram as expetativas de “melhoria dos mecanismos e procedimentos que asseguram o respeito pelos direitos humanos em todo o sistema de controlo de fronteiras” (alínea d), do n.º 2, do artigo 1.º da Lei n.º 73/2021).